terça-feira, 24 de junho de 2014

A dominação masculina: apontamentos a partir de Pierre Bourdieu



Resumo
O artigo a seguir se propõe a levantar reflexões sobre a dominação masculina, a partir do trabalho de Pierre Bourdieu entre os Cabila. Para tanto a reflexão passa pela afirmação bourdieuana de que a ordem masculina do cosmos está corporificada, fazendo vítimas tanto ao homem quanto a mulher, mulher esta que apesar de viver a dominação é também sujeito neste processo, sujeito dominado, mas o é. Por fim, mostra-se como a Igreja tem um papel importante na construção e perpetuação das identidades de gênero, por ser um agente especializado, sacralizando o que está no hábito humano.
Palavras–chave: dominação masculina, hábito, gênero e igreja.

Devo dizer que este texto trata-se de algumas ideias iniciais, que pretende trazer alguns elementos para discussão sobre A Dominação Masculina, que devem ser melhor analisadas e articuladas dentro de uma gama de autoras e autores que trabalham o tema e dentro da própria sociologia de Pierre Bourdieu.
Nosso intuito nesta breve reflexão é analisar a dominação masculina a partir de Pierre Bourdieu em diálogo com autoras feministas como Michelle Perrot (1988), Débora Sayão (2003), Tânia Fonseca (2001) e Mariza Corrêa (1999). Em seguida levantar a questão da mulher enquanto sujeito dominado, tomando aqui a ideia de sujeito pós-estruturalista, baseada especialmente em Foucault. A última parte do nosso trabalho é uma tentativa de avaliar a Igreja dentro daquilo que Bourdieu (2003b) denomina de economia das trocas simbólicas. Nesse sentido, a sua função como estruturada e estruturante da dominação masculina.

A ordem masculina do cosmos inscrita nos corpos de homens e mulheres

Uma característica do trabalho de Pierre Bourdieu é o pragmatismo próprio de quem analisa a realidade como parte dela, sem a pretensa a historicidade comum na filosofia clássica. Seu esforço contínuo foi no sentido de uma sociologia útil para seu tempo, questionadora e denunciante. Por esta razão nos seus estudos rejeitou a lógica escolástica que considerava a existência de um abismo intransponível entre o conhecimento prático e o conhecimento cientifico. Insatisfeito, cria o seu método praxiológico de análise da realidade – do qual o conceito de hábitos é a síntese – uma vez que, em sua opinião, os modos de conhecimento fenomenológico e objetivista não davam conta da complexidade do fenômeno social. O problema residia entre o agente social e sociedade, ou se apreendia o mundo social como natural ou se estudava as relações objetivas negligenciando a esfera subjetiva e participação dos agentes (Ortiz, 1994: 7-36). Segundo Wacquant (2004):
“Bourdieu concebia uma Ciência Social unificada como um ‘serviço publico’ cuja missão” é ‘desnaturalizar’ e ‘desfatalizar’ o mundo social e ‘requerer condutas’ por meio da descoberta das causas objetivas e das razões subjetivas que fazem as pessoas fazerem o que fazem, serem o que são, e sentirem da maneira como sentem”.
Em A Dominação Masculina Pierre Bourdieu estabelece a dominação de gênero no centro da economia das trocas simbólicas (1998: 24). Na sua análise, a constatação de que está prática esta corporificada, fazendo vítimas tanto a mulheres quanto a homens. O corpo é, portanto, o lugar onde se inscrevem as disputas pelo poder, é nele que o nosso capital cultural está inscrito, é ele a nossa primeira forma de identificação desde que nascemos – somos homens ou mulheres. Por conseguinte, o nosso sexo define se seremos dominados ou dominadores. O corpo é a materialização da dominação, é o “lócus” do exercício do poder por excelência. Assim: “a simples observação dos órgãos externos ‘diagnostica’ uma condição que deve valer para toda a vida. Passamos a ser homens ou mulheres e as construções culturais provenientes dessa diferença evidenciam inúmeras desigualdades e hierarquias que se desenvolveram e vêm se acirrando ao longo da historia humana, produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes matizes” (Sayão, 2003: 122).
      A consequência de tais representações sociais engendradas pelo capital simbólico é o quase consenso de que a mulher é o ser menos capaz, o sexo frágil que precisa a todo tempo de um protetor, além disso, ainda hoje relegada a seu papel de reprodutora, enquanto a virilidade e os atributos considerados masculinos como forte e protetor são preferidos em detrimento daqueles concebidos como “feminino”, sendo considerados naturalmente superiores. Assim, o homem é a norma, partindo deste pressuposto as construções simbólicas. É dado que o que é simbólico avança para o político e passa a ser a realidade objetivada. Em outras palavras, a idealização objetivada torna-se subjetiva por meio das instituições formadoras de consciência que fornecem o nosso modo de viver a realidade, como se esta fosse formada por uma unidade de sentindo inquestionável.
“É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’” (Bourdieu, 2002: 11).
Michelle Perrot defende uma postura diferente do autor de A Dominação Masculina. Enquanto para este último as mulheres são dominadas pelo poder masculino, aquela vê nesta relação a possibilidade das mulheres exercerem “poderes” (1988: 167), o que relativizaria o poder do homem, recusando, deste modo, a ideia de uma dominação universal passiva. Para tanto evoca a história das mulheres, argumentando que pensar a história linearmente como a história da dominação masculina é um erro, é excluí-las de um período no qual elas também foram sujeitos. Em Bourdieu a história da resistência não aparece, a dominação é universalizante.Para Perrot não existem limites estanques entre o público e o privado. “As fronteiras entre o público e o privado nem sempre existiram. Elas mudam com o tempo”, assegura (1988: 176). Seguindo esta linha de pensamento, argumenta que as mulheres exercem domínio no cotidiano, nos bastidores, escapando da dominação e “criando elas mesmas o movimento da história” (187). É possível perceber que enquanto Perrot parte do micro para o macro, Bourdieu faz exatamente o inverso, parte do macro para entender o micro. Ele não reconhece as interrupções nos processos históricos – esta é uma das principais críticas feitas a este autor (Fonseca, 2001: 22) – visto que “mesmo pensando a dominação masculina a partir do aspecto simbólico, existem explicitamente formas de ação que resistem à importância do sistema e fissuram, causam rupturas no poder dominante”, afirma Sayão mencionando Soihet (2003: 138).


Bourdieu usa como sustentáculo de seu esquema teórico categorias de oposição binária. A investigação comparativa sobre os usos matrimoniais na Cabília também junto aos camponeses de Béarn, província francesa onde nasceu foi uma “espécie de experimentação epistemológica” (Wacquant, 1997: 38), sendo este primeiro local preferido ao segundo por possuir um “deposito” do nosso inconsciente cultural. De acordo com o autor de A dominação masculina esses esquemas são de aplicação universal, pois acham-se
“inscritos na objetividade das variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as ‘naturalizam’, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que elas engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmicos” (Bourdieu, 2003: 16)
A teoria da dominação masculina do “sociólogo hitoricizante” (Wacquant, 1997) não é muito coerente no que diz respeito a sua universalidade como argumenta Corrêa (1999) questionando o uso da lógica interna do mundo “ocidental” para analisar outras culturas, uma vez que Pierre Bourdieu rejeita o condicionamento a uma sociedade particular como variável e o grau de diferenciação que existe entre elas. Nesse sentido afirma Correa (1999: 45)
“é difícil conciliar os fundamentos da ‘lógica ocidental’ com os da lógica Cabila: ainda que se aceitasse sua pertinência ao mundo mediterrâneo e , por extensão, se aceitasse um substrato comum às diversas culturas que aí existem, é difícil aceitar a transposição daqueles pares de oposição, como traços isolados do contexto social, de uma sociedade para outra e vice-versa”.
A estrutura linguística, especialmente no Ocidente, é baseada em dicotomias. Os signos são construídos binariamente o que nos leva sempre a pensar a realidade formada por pares que se opõe entre si. É baseado nesta conexão que os conceitos normativos são estabelecidos e “são expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam a forma de uma oposição binária que afirma, de forma categórica e sem equivoco, o sentido do masculino e do feminino” observa Lemos (20012002: 79). Scott afirma que tal esquema faz parte da dinâmica da dominação, por isso mexer nessas estruturas pode fazer ruir um sistema inteiro. Nesse sentido afirma:
“Gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo o seu sentido. Para reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa, fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Desta forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se, ambos, partes do sentido do próprio poder. Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro”. (Scott, s/d)
Tânia Fonseca (2001), por sua vez, não encontra contradições em Bourdieu com o argumento de que o etnólogo explora em profundidade as tensões e ambiguidades da dominação de gênero, não apenas enfocando a dominação em si, mas evidenciando os mecanismos pelos quais ela é produzida e é inscrita nas subjetividades das pessoas, antes, porém, já impregnada na esfera social porque esta é estruturada pelas relações de poder entre os gêneros. Nas suas palavras
“O trabalho de Bourdieu torna-se útil às análises da questão do gênero, visto que seus conceitos, além de se inserirem como instrumentos importantes às tentativas de compreensão dessa instituição milenar, que é a da dominação masculina, oferecem oportunidade de uma posição científica epistemológica que não se situa no polo dos determinismos estruturais como tampouco no dos subjetivistas. O reconhecimento da cumplicidade ontológica gerada pelo hábitos, entre os campos sociais e seus agentes, a importância de se entender a distinção, entre os agentes, a partir da introjeção pelos mesmos dos princípios de visão e de divisão inscritos nas estruturas objetivas dos campos e dos grupos e, ainda, a observação das regularidades e das irregularidades das práticas e das estratégias, que além de romper com a idéia dos sujeitos enquanto meros suportes da ideologia, oferecem a noção de uma atuação existencial dentro de limites, são alguns dos estímulos que conferem a Bourdieu a qualidade de ‘companheiro intelectual’ a quem se pode pedir uma mão quando necessário” (2001: 21-22)
À luz destas afirmações é possível concluir que a noção de dominação está na base da violência simbólica (Fonseca, 2001: 26). Portanto a eficácia desta dominação está nos dominados se integrarem como parte da dominação sem ter consciência de sua própria dominação. O caso da rejeição dos seus sexos tido como algo feio e nojento pelas mulheres cabila evidencia muito bem essa dinâmica, ou seja, a adesão do dominado ao dominante. (Bourdieu, 2003, 46-47)

Mulher: sujeito dominado

O cotidiano é formado pela dominação de gênero. Em meio as nossas atividades mais triviais, a situação privilegiada do homem aparece como algo natural, desde o salário inferior concedido à mulher por trabalho igual a regras morais severas abrigadas atrás de “doces” normas que dizem o que convém ou não a uma “dama” ou a uma “moça de bem”, até ao estupro como estratégia militar, quando a violação das mulheres do inimigo significa afronta aos homens daquela nação e o desrespeito a raça oposta, já que do abuso sexual nascem crianças etnicamente híbridas (Saffioti, Almeida, 1995: 3).

A despeito das muitas mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, o fato de que mulher e homem vivem uma relação hierarquizada tem sido apontando em várias pesquisas e pode ser por nós visualizado diariamente sem oferecer nenhuma dificuldade. As relações de gênero têm como transversal em sua dinâmica a dominação e o poder. O poder necessariamente implica numa relação de dominação, no nosso caso especifico, de homens sobre mulheres. Entretanto, pensar esta dinâmica como unilateral, ou seja, como uma barbárie masculina é incorrer no erro da vitimização. A mulher também é sujeito nesta relação, sujeito dominada  noção de sujeito sofreu uma verdadeira revolução a partir da década de 70 com os filósofos pós-estruturalistas. Já não se concebe mais a idéia centralizante de sujeito. “Podemos dizer mesmo, que, nos últimos anos, é inegável no quadro da reflexão teórica das ciências sociais e humanas a evidência de uma progressiva e sistemática desconfiança em relação a qualquer discurso totalizante e a um certo tipo de monopólio cultural dos valores e instituições ocidentais modernas”. (Monteiro, 1997)
As relações de poder não são estáticas, tampouco se encerram no binômio dominador/dominado, em função do poder não estar localizado num lugar específico, pois as relações de força interagem entre si. A descentralização do sujeito e o desvio do macro como catalisador do poder – o Estado na visão marxista – trouxe nova luz sobre a análise social. O poder está no micro, está nas relações cotidianas, está circulando entre as pessoas, não está nas pessoas (Foucault, 1999: 183). Deste modo, “pensar numa simples dominação global de ‘oprimidos’ já não faz sentido para entender processos complicados de relações sociais; as correlações de força são dinâmicas, interagem entre si, se reorganizam, se separam, se contradizem, ou formam sistemas mais abrangentes”. (Monteiro, 1997).
O conceito de gênero  foi criado com a finalidade de deslocar o foco das relações entre os homens e mulheres para o social, antes concebidas no âmbito biológico, por conseguinte tidas como naturais. Supera-se a discussão primeira de igualdade e de diferenças (Scott, 2002: 24) e avança na discussão histórica e relacional de gênero, em outras palavras, o fato de que as realidades históricas são construídas, determinando o social, o cultural e as subjetividades definindo o que é ser homem e o que é ser mulher é descortinado. Deste modo, analisar as relações de gênero, a partir de qualquer realidade histórica sem dúvida é o caminho para mapear as assimetrias e regimes excludentes que por se repetirem em quase todas as culturas ao longo da história humana, encontram-se cristalizados e com uma áurea natural quase acima da questionabilidade, não fosse à resistência destes sujeitos dominados que no último século desdobrou-se em marchas, protestos, reivindicações e teorizações a respeito desta disposição “natural” das coisas.
A noção de sujeito descentralizada elaborada pelos filósofos pós-estruturalistas, numa dimensão relacional foi incorporada nas elaborações teóricas de boa parte das feministas. Deste modo, falar de uma dominação sem resistência e sem participação é ignorar a autonomia do sujeito e voltar à antiga discussão sujeito/objeto. Por esta razão o discurso da microfísica do poder é útil para pensar os microníveis da relação de dominação, que se estilhaça em diversas áreas com sujeitos e não um sujeito (Hekman, 1996: 271). Estas relações não são estabelecidas sem conflitos, são hierárquicas e de poder de um sobre outrem. Num mundo que confere maior importância ao sexo masculino é possível deduzir que a primeira experiência de uma recém-nascida é a desvantagem, “ela já nasce como sujeito dominado” . Deste modo, a relação com o mundo se inicia como uma relação de forças e será reproduzida pela sociedade e pelas instituições que a formam.

Em seu livro A dominação masculina, Bourdieu parece trair a sua própria teoria da luta pelo campo de poder, luta esta travada no interior do campo entre os que estão a margem e no centro, este primeiro para alcançar o núcleo e aqueles para permanecer nele, ou seja, as lutas são constante entre os agentes. Contudo, em A dominação masculina as mulheres absorvem passivamente a “ordem masculina do mundo”, na qual elas estão embebidas, como que em conluio com seus próprios dominadores (1998: 22-23). É inegável que historicamente as mulheres sempre tiveram que enfrentar a desigualdade, todavia, é tão verdade quanto o fato de que elas nunca se submeteram completamente. “Submissão e resistência sempre fizeram parte da vida das mulheres” (Strey, 2001: 9). Essa passividade alegada por Bourdieu não encontra paralelos na história, pois a resistência é parte inerente da dominação, tencionando o poder a todo o tempo.

Igreja: estruturante e estrurada  da/pela ordem masculina do mundo:


As relações de gênero não podem ser entendidas como fato isolado na sociedade, pelo contrário, elas são constitutivas de toda realidade, pois o modelo paradigmático de ser homem e ser mulher regula todas as nossas atividades. Bourdieu afirma que os agentes específicos – aqui está o homem e a mulher – e as instituições, - Escolas, Igrejas, Estado, família – são estruturadas e estruturantes neste processo de naturalização da dominação, ou seja, estes agentes ao mesmo tempo em que têm poder de moldar a sociedade é por ela moldada, na medida em que não é possível estabelecer onde essa reprodução de “esquemas generativos” se inicia, em última análise, trata-se da relação dialética entre a conjuntura e a estrutura do campo. Neste sentido afirma:
“ora longe de afirmar que as estruturas de dominação são a históricas, eu tentarei pelo contrário, comprovar que elas são produto de um trabalho incessante (e, como tal histórico) de reprodução, para o qual contribuem agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas como violência física e a violência simbólica) e instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado. (2003: 46, grifo do autor)
As representações sociais do homem e da mulher não regulam apenas as relações interpessoais entre homens e mulheres, mas também entre homens e homens e mulheres e mulheres. Todavia não se restringe ao âmbito interpessoal, pois são igualmente marcadas pela dominação de gênero as relações no âmbito econômico, político e religioso. Isso porque o hábitos se refere tanto ao social quanto ao individual, uma vez que precede a escolha que antecede a ação. Assim, o processo de internalização da objetividade torna-se objetivação internalizada, pois já está no hábitos humano, traduzido em estruturas, costumes, tradições e normas, assimilados como “certo” “normal” e “natural”. Deste modo, afirma Fonseca (2001: 29-30) os seres humanos nascem com uma distinção “natural”
“bastando-lhes ser o que são para ser o que é preciso ser, seu hábitos sexuado, natureza socialmente constituída, ajusta-se de imediato às exigências do ‘jogo’, o qual é orientado por um conhecimento sem consciência e por uma intencionalidade sem intenção”.
O Hábitos é um conceito fundamental para entender como a prática da dominação adquire um caráter natural, dado e quase divino. É tanto conhecimento obtido, bem como um capital, ou seja, significa “disposição incorporada, quase postural” (Bourdieu, 2002: 61) do agente, em outras palavras, é a objetividade das práticas subjetivas. Nesta linha de pensamento, o hábito pressupõe um conjunto de noções que antecede a ação, esta última constituindo-se nas práticas dos agentes no interior do campo social. Nas palavras de Ortiz (1994:16), “o hábitos se sustenta, pois, através de ‘esquemas generativos’ que, por um lado, antecedem e orientam a ação e, por outro, estão na origem de outros ‘esquemas generativos’ que presidem a apreensão do mundo enquanto conhecimento”.A Igreja é um dos pilares sobre o qual se assenta a relação hierarquizada entre os sexos. As religiões são detentoras do capital simbólico e, portanto, manipulam a produção simbólica e a circulação dos bens simbólicos, e o fazem através de representações, linguagens e palavra autorizada, reforçando e sacralizando a relação desigual entre homens e mulheres. A estrutura deste campo religioso é um espaço caracterizado por lutas e tensões entre os agentes e as instituições.A concorrência pelo poder religioso deve sua especificidade (em relação, por exemplo, à concorrência que se estabelece no campo político) ao fato de que seu alvo reside no monopólio do exercício legítimo do poder de modificar em bases duradouras e em profundidade a prática e a visão do mundo dos leigos, impondo-lhes e inculcando-lhes um hábitos religioso particular, isto é, uma disposição duradoura, generalizada e transferível de agir e de pensar conforme os princípios de uma visão (quase) sistemática do mundo e da existência (Bourdieu, 2003b: 88).A Igreja contribui para manutenção da ordem política, na realidade, ela reforça simbolicamente esta ordem. Ana keila Pinezzi (2004: 194-195) aponta o trabalho de uma igreja protestante histórica para inculcar em seus membros o fato de que a submissão feminina ao homem (subalternidade esta que a impede de ascender a qualquer cargo ordenado na Igreja) é antes um retrato da própria relação da igreja com Cristo, da qual ele é o “cabeça”. Neste e em outros casos o poder religioso dá uma áurea de normalidade ao poder político que torna natural a dominação e a exclusão de mulheres do controle da instituição, o faz por meio da sua teologia, dos seus discursos e normas. Quanto a isso pondera Bourdieu (2003b: 69)
“A estrutura das relações entre o campo religioso e o campo do poder comanda, em cada conjuntura, a configuração da estrutura das relações constitutivas do campo religioso que cumpre uma função externa de legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política”.

Entretanto a relação dominador/dominado, não acontece sem lutas e resistência, pois “a estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes e as instituições engajadas na luta, ou, se preferirmos, da distribuição do capital especifico que, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores” (Bourdieu, 2003b: 120). A lógica interna da dominação só funciona porque os dominantes utilizam categorias do ponto de vista dos dominados, o que faz com que o dominado não perceba que aquela é uma relação de forças. Na realidade “os sistemas simbólicos devem sua força ao facto de as relações de força que neles se exprimem só se manifestam neles em forma irreconhecível de relações de sentido[...] ”. (Bourdieu, 2002: 14) A tradição judaico-cristã é predominantemente misógina. O androcentrismo está impregnado nos textos tidos como sagrados, nas doutrinas, nos códigos internos, na tradição e nos cantos, isto é, no modo de exercitar as suas respectivas religiosidades. O sagrado está estreitamente relacionado ao homem enquanto a maldade ao elemento feminino  . Relacionar a masculinidade ao divino legitima a superioridade das qualidades concebidas como masculinas, em última instância, cria as identidades de gênero como bem afirmou Lemos “se sentir como alguém especial para o sagrado é fator de grande peso positivo na formação de uma identidade” (2001/2002: 79), ou seja, a tradição cristã tem privilegiado o homem nesta relação complexa, portanto tem legitimado a dominação masculina dando a ela um aspecto essencial o de sacralidade e de ordenança divina. A Igreja, enquanto instituição formadora de sentido, tem papel fundamental na criação e perpetuação das identidades de gênero, pois é inegável que a influência das ideias religiosas ainda é muito forte na nossa sociedade, ainda que esta se afirme laica. Ela reforça justamente a idéia da inferioridade da mulher por meio dos seus discursos ratificados nos modelos paradigmáticos de mulher tipificados nas figuras de Maria e Eva. Qualquer tentativa de inversão desta ordem é uma tentativa contra o corpus sagrado que controla a produção dos bens simbólicos. Assim, “qualquer mulher que queira mudar essa ordem, não estará somente se rebelando contra uma ordem humana, mas, acima de tudo contra, desobedecendo a Deus e piorando anda mais sua condição de pecadora, arriscando a atrair mais desgraças ainda sobre a humanidade”. (Lemos, 2001/2002: 83, grifo nosso).

Conclusão 

A dominação O esforço de Pierre Bourdieu em compreender a lógica da dominação masculina deve ser reconhecido, quer se concorde com suas ideias ou não. Ele parte do pressuposto que a ordem do cosmos é masculina, inscrita nos corpos de ambos os sexos, não havendo possibilidade de escapar dela, porque ele se evidencia na natureza biológica mostrando-se como natural quando na realidade é também construto social naturalizado. De fato, ele descortina a complexidade da questão da dominação com uma meticulosidade admirável; por outro lado, surpreende o fato de que um certo fatalismo é notado em sua fala quando desconsidera a participação das mulheres como agentes também, no sentindo de mostrar as interrupções que são próprias do processo de dominação, em A Dominação Masculina, a hegemonia é homogênea.

A alquimia perfeita entre a igreja masculina é apontada como parte da economia das trocas simbólica, pois cria as identidades de todos nós homens e mulheres, a partir de elementos misóginos que permeia toda história da tradição judaico-cristã. A religião reforça, de um modo geral reforça essa idéia da mulher como sempre disposta a servir, a perdoar, a ser submissa, a completar se na maternidade, esta vista como algo divino que a coloca em segundo plano sempre. Está ai Maria, serva submissa que aceita o seu destino, paradigma para todas as mulheres. Nesse sentido, é instigante pensar sobre a razão ou razões pelas quais essas mulheres mantêm uma relação tão particular com a Igreja, não obstante esta mesma Igreja lhe conferir um lugar secundário, ainda que sejam a maioria absoluta neste tipo de instituição social e que é, especialmente, pelo seu trabalho que a Igreja se mantém no cotidiano. Isso fica para um outro momento.

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