Resumo
O artigo a seguir se propõe a
levantar reflexões sobre a dominação masculina, a partir do trabalho de Pierre
Bourdieu entre os Cabila. Para tanto a reflexão passa pela afirmação bourdieuana
de que a ordem masculina do cosmos está corporificada, fazendo vítimas tanto ao
homem quanto a mulher, mulher esta que apesar de viver a dominação é também
sujeito neste processo, sujeito dominado, mas o é. Por fim, mostra-se como a
Igreja tem um papel importante na construção e perpetuação das identidades de
gênero, por ser um agente especializado, sacralizando o que está no hábito
humano.
Palavras–chave: dominação masculina, hábito,
gênero e igreja.
Devo dizer que este texto
trata-se de algumas ideias iniciais, que pretende trazer alguns elementos para
discussão sobre A Dominação Masculina, que devem ser melhor analisadas e
articuladas dentro de uma gama de autoras e autores que trabalham o tema e
dentro da própria sociologia de Pierre Bourdieu.
Nosso intuito nesta breve
reflexão é analisar a dominação masculina a partir de Pierre Bourdieu em
diálogo com autoras feministas como Michelle Perrot (1988), Débora Sayão
(2003), Tânia Fonseca (2001) e Mariza Corrêa (1999). Em seguida levantar a
questão da mulher enquanto sujeito dominado, tomando aqui a ideia de sujeito
pós-estruturalista, baseada especialmente em Foucault. A última parte do nosso
trabalho é uma tentativa de avaliar a Igreja dentro daquilo que Bourdieu
(2003b) denomina de economia das trocas simbólicas. Nesse sentido, a sua função
como estruturada e estruturante da dominação masculina.
A ordem masculina do cosmos inscrita nos corpos de homens e mulheres
Uma característica do trabalho de Pierre Bourdieu é o
pragmatismo próprio de quem analisa a realidade como parte dela, sem a pretensa
a historicidade comum na filosofia clássica. Seu esforço contínuo foi no
sentido de uma sociologia útil para seu tempo, questionadora e denunciante. Por
esta razão nos seus estudos rejeitou a lógica escolástica que considerava a
existência de um abismo intransponível entre o conhecimento prático e o
conhecimento cientifico. Insatisfeito, cria o seu método praxiológico de
análise da realidade – do qual o conceito de hábitos é a síntese – uma vez que,
em sua opinião, os modos de conhecimento fenomenológico e objetivista não davam
conta da complexidade do fenômeno social. O problema residia entre o agente
social e sociedade, ou se apreendia o mundo social como natural ou se estudava
as relações objetivas negligenciando a esfera subjetiva e participação dos
agentes (Ortiz, 1994: 7-36). Segundo Wacquant (2004):
“Bourdieu concebia uma Ciência Social unificada
como um ‘serviço publico’ cuja missão” é ‘desnaturalizar’ e ‘desfatalizar’ o
mundo social e ‘requerer condutas’ por meio da descoberta das causas objetivas
e das razões subjetivas que fazem as pessoas fazerem o que fazem, serem o que
são, e sentirem da maneira como sentem”.
Em A Dominação Masculina Pierre Bourdieu estabelece
a dominação de gênero no centro da economia das trocas simbólicas (1998: 24).
Na sua análise, a constatação de que está prática esta corporificada, fazendo
vítimas tanto a mulheres quanto a homens. O corpo é, portanto, o lugar onde se
inscrevem as disputas pelo poder, é nele que o nosso capital cultural está
inscrito, é ele a nossa primeira forma de identificação desde que nascemos –
somos homens ou mulheres. Por conseguinte, o nosso sexo define se seremos
dominados ou dominadores. O corpo é a materialização da dominação, é o “lócus”
do exercício do poder por excelência. Assim: “a simples observação dos órgãos externos
‘diagnostica’ uma condição que deve valer para toda a vida. Passamos a ser
homens ou mulheres e as construções culturais provenientes dessa diferença
evidenciam inúmeras desigualdades e hierarquias que se desenvolveram e vêm se
acirrando ao longo da historia humana, produzindo significados e testemunhando
práticas de diferentes matizes” (Sayão, 2003: 122).
A consequência de tais representações
sociais engendradas pelo capital simbólico é o quase consenso de que a mulher é
o ser menos capaz, o sexo frágil que precisa a todo tempo de um protetor, além
disso, ainda hoje relegada a seu papel de reprodutora, enquanto a virilidade e
os atributos considerados masculinos como forte e protetor são preferidos em
detrimento daqueles concebidos como “feminino”, sendo considerados naturalmente
superiores. Assim, o homem é a norma, partindo deste pressuposto as construções
simbólicas. É dado que o que é simbólico avança para o político e passa a ser a
realidade objetivada. Em outras palavras, a idealização objetivada torna-se
subjetiva por meio das instituições formadoras de consciência que fornecem o
nosso modo de viver a realidade, como se esta fosse formada por uma unidade de
sentindo inquestionável.
“É enquanto instrumentos estruturados e
estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos
cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da
dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra
(violência simbólica) dando reforço da sua própria força às relações de força
que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a
‘domesticação dos dominados’” (Bourdieu, 2002: 11).
Michelle Perrot defende uma
postura diferente do autor de A Dominação Masculina. Enquanto para este último
as mulheres são dominadas pelo poder masculino, aquela vê nesta relação a
possibilidade das mulheres exercerem “poderes” (1988: 167), o que relativizaria
o poder do homem, recusando, deste modo, a ideia de uma dominação universal
passiva. Para tanto evoca a história das mulheres, argumentando que pensar a
história linearmente como a história da dominação masculina é um erro, é
excluí-las de um período no qual elas também foram sujeitos. Em Bourdieu a
história da resistência não aparece, a dominação é universalizante.Para
Perrot não existem limites estanques entre o público e o privado. “As
fronteiras entre o público e o privado nem sempre existiram. Elas mudam com o
tempo”, assegura (1988: 176). Seguindo esta linha de pensamento, argumenta que
as mulheres exercem domínio no cotidiano, nos bastidores, escapando da
dominação e “criando elas mesmas o movimento da história” (187). É possível
perceber que enquanto Perrot parte do micro para o macro, Bourdieu faz
exatamente o inverso, parte do macro para entender o micro. Ele não reconhece
as interrupções nos processos históricos – esta é uma das principais críticas
feitas a este autor (Fonseca, 2001: 22) – visto que “mesmo pensando a dominação
masculina a partir do aspecto simbólico, existem explicitamente formas de ação
que resistem à importância do sistema e fissuram, causam rupturas no poder
dominante”, afirma Sayão mencionando Soihet (2003: 138).
Bourdieu
usa como sustentáculo de seu esquema teórico categorias de oposição binária. A
investigação comparativa sobre os usos matrimoniais na Cabília também junto aos
camponeses de Béarn, província francesa onde nasceu foi uma “espécie de
experimentação epistemológica” (Wacquant, 1997: 38), sendo este primeiro local
preferido ao segundo por possuir um “deposito” do nosso inconsciente cultural.
De acordo com o autor de A dominação masculina esses esquemas são de aplicação
universal, pois acham-se
“inscritos na objetividade das variações e dos
traços distintivos (por exemplo em matéria corporal) que eles contribuem para
fazer existir, ao mesmo tempo que as ‘naturalizam’, inscrevendo-as em um
sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as
previsões que elas engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do
mundo, sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmicos” (Bourdieu, 2003:
16)
A teoria
da dominação masculina do “sociólogo hitoricizante” (Wacquant, 1997) não é
muito coerente no que diz respeito a sua universalidade como argumenta Corrêa
(1999) questionando o uso da lógica interna do mundo “ocidental” para analisar
outras culturas, uma vez que Pierre Bourdieu rejeita o condicionamento a uma
sociedade particular como variável e o grau de diferenciação que existe entre
elas. Nesse sentido afirma Correa (1999: 45)
“é difícil conciliar os fundamentos da ‘lógica
ocidental’ com os da lógica Cabila: ainda que se aceitasse sua pertinência ao
mundo mediterrâneo e , por extensão, se aceitasse um substrato comum às
diversas culturas que aí existem, é difícil aceitar a transposição daqueles
pares de oposição, como traços isolados do contexto social, de uma sociedade
para outra e vice-versa”.
A
estrutura linguística, especialmente no Ocidente, é baseada em dicotomias. Os
signos são construídos binariamente o que nos leva sempre a pensar a realidade
formada por pares que se opõe entre si. É baseado nesta conexão que os
conceitos normativos são estabelecidos e “são expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam
a forma de uma oposição binária que afirma, de forma categórica e sem equivoco,
o sentido do masculino e do feminino” observa Lemos (20012002: 79). Scott
afirma que tal esquema faz parte da dinâmica da dominação, por isso mexer
nessas estruturas pode fazer ruir um sistema inteiro. Nesse sentido afirma:
“Gênero é uma das referências recorrentes pelas
quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à
oposição homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo o seu sentido. Para
reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa, fora
de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Desta
forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se,
ambos, partes do sentido do próprio poder. Colocar em questão ou mudar um
aspecto ameaça o sistema por inteiro”. (Scott, s/d)
Tânia
Fonseca (2001), por sua vez, não encontra contradições em Bourdieu com o
argumento de que o etnólogo explora em profundidade as tensões e ambiguidades
da dominação de gênero, não apenas enfocando a dominação em si, mas
evidenciando os mecanismos pelos quais ela é produzida e é inscrita nas
subjetividades das pessoas, antes, porém, já impregnada na esfera social porque
esta é estruturada pelas relações de poder entre os gêneros. Nas suas palavras
“O trabalho de Bourdieu torna-se
útil às análises da questão do gênero, visto que seus conceitos, além de se
inserirem como instrumentos importantes às tentativas de compreensão dessa
instituição milenar, que é a da dominação masculina, oferecem oportunidade de
uma posição científica epistemológica que não se situa no polo dos
determinismos estruturais como tampouco no dos subjetivistas. O reconhecimento
da cumplicidade ontológica gerada pelo hábitos, entre os campos sociais e seus
agentes, a importância de se entender a distinção, entre os agentes, a partir
da introjeção pelos mesmos dos princípios de visão e de divisão inscritos nas estruturas
objetivas dos campos e dos grupos e, ainda, a observação das regularidades e
das irregularidades das práticas e das estratégias, que além de romper com a
idéia dos sujeitos enquanto meros suportes da ideologia, oferecem a noção de
uma atuação existencial dentro de limites, são alguns dos estímulos que
conferem a Bourdieu a qualidade de ‘companheiro intelectual’ a quem se pode
pedir uma mão quando necessário” (2001: 21-22)
À luz destas afirmações é
possível concluir que a noção de dominação está na base da violência simbólica
(Fonseca, 2001: 26). Portanto a eficácia desta dominação está nos dominados se
integrarem como parte da dominação sem ter consciência de sua própria
dominação. O caso da rejeição dos seus sexos tido como algo feio e nojento pelas
mulheres cabila evidencia muito bem essa dinâmica, ou seja, a adesão do
dominado ao dominante. (Bourdieu, 2003, 46-47)
Mulher: sujeito dominado
O cotidiano é formado pela dominação de gênero. Em meio as nossas atividades mais triviais, a situação privilegiada do homem aparece como algo natural, desde o salário inferior concedido à mulher por trabalho igual a regras morais severas abrigadas atrás de “doces” normas que dizem o que convém ou não a uma “dama” ou a uma “moça de bem”, até ao estupro como estratégia militar, quando a violação das mulheres do inimigo significa afronta aos homens daquela nação e o desrespeito a raça oposta, já que do abuso sexual nascem crianças etnicamente híbridas (Saffioti, Almeida, 1995: 3).
A despeito das muitas mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, o fato de que mulher e homem vivem uma relação hierarquizada tem sido apontando em várias pesquisas e pode ser por nós visualizado diariamente sem oferecer nenhuma dificuldade. As relações de gênero têm como transversal em sua dinâmica a dominação e o poder. O poder necessariamente implica numa relação de dominação, no nosso caso especifico, de homens sobre mulheres. Entretanto, pensar esta dinâmica como unilateral, ou seja, como uma barbárie masculina é incorrer no erro da vitimização. A mulher também é sujeito nesta relação, sujeito dominada noção de sujeito sofreu uma verdadeira revolução a partir da década de 70 com os filósofos pós-estruturalistas. Já não se concebe mais a idéia centralizante de sujeito. “Podemos dizer mesmo, que, nos últimos anos, é inegável no quadro da reflexão teórica das ciências sociais e humanas a evidência de uma progressiva e sistemática desconfiança em relação a qualquer discurso totalizante e a um certo tipo de monopólio cultural dos valores e instituições ocidentais modernas”. (Monteiro, 1997)As relações de poder não são estáticas, tampouco se encerram no binômio dominador/dominado, em função do poder não estar localizado num lugar específico, pois as relações de força interagem entre si. A descentralização do sujeito e o desvio do macro como catalisador do poder – o Estado na visão marxista – trouxe nova luz sobre a análise social. O poder está no micro, está nas relações cotidianas, está circulando entre as pessoas, não está nas pessoas (Foucault, 1999: 183). Deste modo, “pensar numa simples dominação global de ‘oprimidos’ já não faz sentido para entender processos complicados de relações sociais; as correlações de força são dinâmicas, interagem entre si, se reorganizam, se separam, se contradizem, ou formam sistemas mais abrangentes”. (Monteiro, 1997).
O conceito de gênero foi criado com a finalidade de deslocar o foco das relações entre os homens e mulheres para o social, antes concebidas no âmbito biológico, por conseguinte tidas como naturais. Supera-se a discussão primeira de igualdade e de diferenças (Scott, 2002: 24) e avança na discussão histórica e relacional de gênero, em outras palavras, o fato de que as realidades históricas são construídas, determinando o social, o cultural e as subjetividades definindo o que é ser homem e o que é ser mulher é descortinado. Deste modo, analisar as relações de gênero, a partir de qualquer realidade histórica sem dúvida é o caminho para mapear as assimetrias e regimes excludentes que por se repetirem em quase todas as culturas ao longo da história humana, encontram-se cristalizados e com uma áurea natural quase acima da questionabilidade, não fosse à resistência destes sujeitos dominados que no último século desdobrou-se em marchas, protestos, reivindicações e teorizações a respeito desta disposição “natural” das coisas.
A noção de sujeito
descentralizada elaborada pelos filósofos pós-estruturalistas, numa dimensão
relacional foi incorporada nas elaborações teóricas de boa parte das
feministas. Deste modo, falar de uma dominação sem resistência e sem
participação é ignorar a autonomia do sujeito e voltar à antiga discussão
sujeito/objeto. Por esta razão o discurso da microfísica do poder é útil para
pensar os microníveis da relação de dominação, que se estilhaça em diversas
áreas com sujeitos e não um sujeito (Hekman, 1996: 271). Estas relações não são
estabelecidas sem conflitos, são hierárquicas e de poder de um sobre outrem.
Num mundo que confere maior importância ao sexo masculino é possível deduzir
que a primeira experiência de uma recém-nascida é a desvantagem, “ela já nasce
como sujeito dominado” . Deste modo, a relação com o mundo se inicia como uma
relação de forças e será reproduzida pela sociedade e pelas instituições que a
formam.
Em seu livro A dominação masculina, Bourdieu parece trair a sua própria teoria da luta pelo campo de poder, luta esta travada no interior do campo entre os que estão a margem e no centro, este primeiro para alcançar o núcleo e aqueles para permanecer nele, ou seja, as lutas são constante entre os agentes. Contudo, em A dominação masculina as mulheres absorvem passivamente a “ordem masculina do mundo”, na qual elas estão embebidas, como que em conluio com seus próprios dominadores (1998: 22-23). É inegável que historicamente as mulheres sempre tiveram que enfrentar a desigualdade, todavia, é tão verdade quanto o fato de que elas nunca se submeteram completamente. “Submissão e resistência sempre fizeram parte da vida das mulheres” (Strey, 2001: 9). Essa passividade alegada por Bourdieu não encontra paralelos na história, pois a resistência é parte inerente da dominação, tencionando o poder a todo o tempo.
Igreja: estruturante e estrurada da/pela ordem masculina do mundo:
As relações de gênero não podem ser entendidas como fato
isolado na sociedade, pelo contrário, elas são constitutivas de toda realidade,
pois o modelo paradigmático de ser homem e ser mulher regula todas as nossas
atividades. Bourdieu afirma que os agentes específicos – aqui está o homem e a
mulher – e as instituições, - Escolas, Igrejas, Estado, família – são
estruturadas e estruturantes neste processo de naturalização da dominação, ou
seja, estes agentes ao mesmo tempo em que têm poder de moldar a sociedade é por
ela moldada, na medida em que não é possível estabelecer onde essa reprodução
de “esquemas generativos” se inicia, em última análise, trata-se da relação
dialética entre a conjuntura e a estrutura do campo. Neste sentido afirma:
“ora longe de afirmar que as estruturas de
dominação são a históricas, eu tentarei pelo contrário, comprovar que elas são
produto de um trabalho incessante (e, como tal histórico) de reprodução, para o
qual contribuem agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas
como violência física e a violência simbólica) e instituições, famílias,
Igreja, Escola, Estado. (2003: 46, grifo do autor)
As
representações sociais do homem e da mulher não regulam apenas as relações
interpessoais entre homens e mulheres, mas também entre homens e homens e
mulheres e mulheres. Todavia não se restringe ao âmbito interpessoal, pois são
igualmente marcadas pela dominação de gênero as relações no âmbito econômico,
político e religioso. Isso porque o hábitos se refere tanto ao social quanto ao
individual, uma vez que precede a escolha que antecede a ação. Assim, o
processo de internalização da objetividade torna-se objetivação internalizada,
pois já está no hábitos humano, traduzido em estruturas, costumes, tradições e
normas, assimilados como “certo” “normal” e “natural”. Deste modo, afirma
Fonseca (2001: 29-30) os seres humanos nascem com uma distinção “natural”
“bastando-lhes ser o que são para ser o que é
preciso ser, seu hábitos sexuado, natureza socialmente constituída, ajusta-se
de imediato às exigências do ‘jogo’, o qual é orientado por um conhecimento sem
consciência e por uma intencionalidade sem intenção”.
O Hábitos é um conceito
fundamental para entender como a prática da dominação adquire um caráter
natural, dado e quase divino. É tanto conhecimento obtido, bem como um capital,
ou seja, significa “disposição incorporada, quase postural” (Bourdieu, 2002:
61) do agente, em outras palavras, é a objetividade das práticas subjetivas.
Nesta linha de pensamento, o hábito pressupõe um conjunto de noções que
antecede a ação, esta última constituindo-se nas práticas dos agentes no
interior do campo social. Nas palavras de Ortiz (1994:16), “o hábitos se
sustenta, pois, através de ‘esquemas generativos’ que, por um lado, antecedem e
orientam a ação e, por outro, estão na origem de outros ‘esquemas generativos’
que presidem a apreensão do mundo enquanto conhecimento”.A Igreja é um dos
pilares sobre o qual se assenta a relação hierarquizada entre os sexos. As
religiões são detentoras do capital simbólico e, portanto, manipulam a produção
simbólica e a circulação dos bens simbólicos, e o fazem através de
representações, linguagens e palavra autorizada, reforçando e sacralizando a
relação desigual entre homens e mulheres. A estrutura deste campo religioso é
um espaço caracterizado por lutas e tensões entre os agentes e as
instituições.A concorrência pelo poder religioso deve sua especificidade (em
relação, por exemplo, à concorrência que se estabelece no campo político) ao
fato de que seu alvo reside no monopólio do exercício legítimo do poder de
modificar em bases duradouras e em profundidade a prática e a visão do mundo
dos leigos, impondo-lhes e inculcando-lhes um hábitos religioso particular,
isto é, uma disposição duradoura, generalizada e transferível de agir e de
pensar conforme os princípios de uma visão (quase) sistemática do mundo e da
existência (Bourdieu, 2003b: 88).A Igreja contribui para manutenção da ordem
política, na realidade, ela reforça simbolicamente esta ordem. Ana keila
Pinezzi (2004: 194-195) aponta o trabalho de uma igreja protestante histórica
para inculcar em seus membros o fato de que a submissão feminina ao homem
(subalternidade esta que a impede de ascender a qualquer cargo ordenado na
Igreja) é antes um retrato da própria relação da igreja com Cristo, da qual ele
é o “cabeça”. Neste e em outros casos o poder religioso dá uma áurea de
normalidade ao poder político que torna natural a dominação e a exclusão de
mulheres do controle da instituição, o faz por meio da sua teologia, dos seus
discursos e normas. Quanto a isso pondera Bourdieu (2003b: 69)
“A estrutura das relações entre o campo religioso e
o campo do poder comanda, em cada conjuntura, a configuração da estrutura das
relações constitutivas do campo religioso que cumpre uma função externa de
legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem
simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política”.
Entretanto a relação
dominador/dominado, não acontece sem lutas e resistência, pois “a estrutura do
campo é um estado da relação de força entre os agentes e as instituições
engajadas na luta, ou, se preferirmos, da distribuição do capital especifico
que, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores”
(Bourdieu, 2003b: 120). A lógica interna da dominação só funciona porque os
dominantes utilizam categorias do ponto de vista dos dominados, o que faz com
que o dominado não perceba que aquela é uma relação de forças. Na realidade “os
sistemas simbólicos devem sua força ao facto de as relações de força que neles
se exprimem só se manifestam neles em forma irreconhecível de relações de
sentido[...] ”. (Bourdieu, 2002: 14) A tradição judaico-cristã é
predominantemente misógina. O androcentrismo está impregnado nos textos tidos
como sagrados, nas doutrinas, nos códigos internos, na tradição e nos cantos,
isto é, no modo de exercitar as suas respectivas religiosidades. O sagrado está
estreitamente relacionado ao homem enquanto a maldade ao elemento feminino . Relacionar a masculinidade ao divino
legitima a superioridade das qualidades concebidas como masculinas, em última
instância, cria as identidades de gênero como bem afirmou Lemos “se sentir como
alguém especial para o sagrado é fator de grande peso positivo na formação de
uma identidade” (2001/2002: 79), ou seja, a tradição cristã tem privilegiado o
homem nesta relação complexa, portanto tem legitimado a dominação masculina
dando a ela um aspecto essencial o de sacralidade e de ordenança divina. A Igreja,
enquanto instituição formadora de sentido, tem papel fundamental na criação e
perpetuação das identidades de gênero, pois é inegável que a influência das
ideias religiosas ainda é muito forte na nossa sociedade, ainda que esta se
afirme laica. Ela reforça justamente a idéia da inferioridade da mulher por
meio dos seus discursos ratificados nos modelos paradigmáticos de mulher
tipificados nas figuras de Maria e Eva. Qualquer tentativa de inversão desta
ordem é uma tentativa contra o corpus sagrado que controla a produção dos bens
simbólicos. Assim, “qualquer mulher que queira mudar essa ordem, não estará
somente se rebelando contra uma ordem humana, mas, acima de tudo contra,
desobedecendo a Deus e piorando anda mais sua condição de pecadora, arriscando
a atrair mais desgraças ainda sobre a humanidade”. (Lemos, 2001/2002: 83, grifo
nosso).
Conclusão
A dominação O esforço de Pierre Bourdieu em compreender a lógica da dominação masculina deve ser reconhecido, quer se concorde com suas ideias ou não. Ele parte do pressuposto que a ordem do cosmos é masculina, inscrita nos corpos de ambos os sexos, não havendo possibilidade de escapar dela, porque ele se evidencia na natureza biológica mostrando-se como natural quando na realidade é também construto social naturalizado. De fato, ele descortina a complexidade da questão da dominação com uma meticulosidade admirável; por outro lado, surpreende o fato de que um certo fatalismo é notado em sua fala quando desconsidera a participação das mulheres como agentes também, no sentindo de mostrar as interrupções que são próprias do processo de dominação, em A Dominação Masculina, a hegemonia é homogênea.
A alquimia perfeita entre a igreja masculina é apontada como parte da
economia das trocas simbólica, pois cria as identidades de todos nós homens e
mulheres, a partir de elementos misóginos que permeia toda história da tradição
judaico-cristã. A religião reforça, de um modo geral reforça essa idéia da
mulher como sempre disposta a servir, a perdoar, a ser submissa, a completar se
na maternidade, esta vista como algo divino que a coloca em segundo plano
sempre. Está ai Maria, serva submissa que aceita o seu destino, paradigma para
todas as mulheres. Nesse sentido, é instigante pensar sobre a razão ou razões
pelas quais essas mulheres mantêm uma relação tão particular com a Igreja, não
obstante esta mesma Igreja lhe conferir um lugar secundário, ainda que sejam a
maioria absoluta neste tipo de instituição social e que é, especialmente, pelo
seu trabalho que a Igreja se mantém no cotidiano. Isso fica para um outro
momento.
Gostaria muito de ter acesso à bibliografia utilizada pela autora
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